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domingo, 28 de fevereiro de 2010

Exilio

Eu caminhei na noite
Entre silêncio e frio
Só uma estrela secreta me guiava
Grandes perigos na noite me apareceram
Da minha estrela julguei que eu a julgara

Verdadeira sendo ela só reflexo
De uma cidade a néon enfeitada
A minha solidão me pareceu coroa
Sinal de perfeição em minha fronte
Mas vi quando no vento me humilhava

Que a coroa que eu levava era de um ferro
Tão pesado que toda me dobrava
Do frio das montanhas eu pensei
«Minha pureza me cerca e me rodeia»
Porém meu pensamento apodreceu

E a pureza das coisas cintilava
E eu vi que a limpidez não era eu
E a fraqueza da carne e a miragem do espírito
Em monstruosa voz se transformaram
Disse às pedras do monte que falassem

Mas elas como pedras se calaram
Sozinha me vi delirante e perdida
E uma estrela serena me espantava
E eu caminhei na noite minha sombra
De desmedidos gestos me cercava

Silêncio e medo
Nos confins desolados caminhavam
Então eu vi chegar ao meu encontro
Aqueles que uma estrela iluminava
E assim eles disseram: «Vem connosco

Se também vens seguindo aquela estrela»
Então eu soube que a estrela que eu seguia
Era real e não imaginada
Grandes noites redondas nos cercaram
Grandes brumas miragens nos mostraram

Grandes silêncios de ecos vagabundos
Em direcções distantes nos chamaram
E a sombra dos três homens sobre a terra
Ao lado dos meus passos caminhava
E eu espantada vi que aquela estrela

Para a cidade dos homens nos guiava
E a estrela do céu parou em cima
De uma rua sem cor e sem beleza
Onde a luz tinha a cor que tem a cinza
Longe do verde do azul da natureza

Ali não vi as coisas que eu amava
Nem o brilho do sol nem o da água
Ao lado do hospital e da prisão
Entre o agiota e o templo profanado
Onde a rua é mais triste e mais sozinha

E onde tudo parece abandonado
Um lugar pela estrela foi marcado
Nesse lugar pensei: «Quanto deserto
Atravessei para encontrar aquilo
Que morava entre os homens e tão perto

(Sophia de Mello Breyner Andresen)

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Hora

Sinto que hoje novamente embarco
Para as grandes aventuras,
Passam no ar palavras obscuras
E o meu desejo canta --- por isso marco
Nos meus sentidos a imagem desta hora.

Sonoro e profundo
Aquele mundo
Que eu sonhara e perdera
Espera
O peso dos meus gestos.

E dormem mil gestos nos meus dedos.

Desligadas dos círculos funestos
Das mentiras alheias,
Finalmente solitárias,
As minhas mãos estão cheias
De expectativa e de segredos
Como os negros arvoredos
Que baloiçam na noite murmurando.

Ao longe por mim oiço chamando
A voz das coisas que eu sei amar.

E de novo caminho para o mar.

(Sophia de Mello Breyner Andresen)

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

SER MULHER




Ser mulher não é ter nas formas de escultura,
No traço do perfil, no corpo fascinante,
A beleza que um dia o tempo transfigura
E um olhar deslumbrado atrai a cada instante.

Ser mulher não é só ter a graça empolgante,
O feitiço absorvente, a lascívia e a ternura;
Ser mulher não é ter na carne provocante
A volúpia infernal que arrasta e desfigura...

Ser mulher é ter na alma essa imortal beleza
De quem sabe pensar com toda a sutileza
E no próprio ideal rara virtude alcança...

É ter, simples e pura, os sentimentos francos...
E, ainda no fulgor dos seus cabelos brancos,
Sonhar como mulher, sentir como criança!

Carmen Cintra
1905-1933

sábado, 20 de fevereiro de 2010

A Serenata

Numa noite de lua pálida e gerânios
ele viria com boca e mão incríveis
tocar flauta no jardim.
Estou no começo do meu desespero
e só vejo dois caminhos:
ou viro doida ou santa.

Eu que rejeito e exprobo
o que não for natural como sangue e veias
descubro que estou chorando todo dia,
os cabelos entristecidos,
a pele assaltada de indecisão.

Quando ele vier, porque é certo que ele vem,
de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?
A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
- só a mulher entre as coisas envelhece.

De que modo vou abrir a janela, se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?

(Adélia Prado)

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

O Sentido Secreto da Vida

Há um sentido profundo
Na superficialidade das coisas,
Uma ordem inalterável
No caos aparente dos mundos.

Vibra um trabalho silencioso e incessante
Dentro da imobilidade das plantas:
No crescer das raízes,
No desabrochar das flores,
No sazonar das frutas.

Há um aperfeiçoamento invisível
Dentro do silêncio de nosso Eu:
Nos sentimentos que florescem,
Nas idéias que voam,
Nas mágoas que sangram.

Uma folha morta
Não cai inutilmente.
A lágrima não rola em vão.
Uma invisível mão misericordiosa
Suaviza a queda da folha,
Enxuga o pranto da face.

(Helena Kolody)

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

SAUDADE



Saudade é a imagem das recordações...
De luz acesa, crepitante chama
Que aquece a alma e gera evocações
E sem querer o desengano engana.

Saudade é um verso feito de emoções...
Acre perfume que a doçura emana
Torpor que entrando em nossos corações
Quanto mais embriaga, mais inflama...

Doce abandono... Ausência merencória...
De um passado distante a viva história
Que em nós conserva uma lembrança pura.

Saudade é o silvo agudo de um lamento
Que escutamos no perpassar do tempo
Como sendo delícia e amargura.


Bernardina Vilar

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

A falta que ama

Entre areia, sol e grama
o que se esquiva se dá,
enquanto a falta que ama
procura alguém que não há.

Está coberto de terra,
forrado de esquecimento.
Onde a vista mais se aferra,
a dália é toda cimento.

A transparência da hora
corrói ângulos obscuros:
cantiga que não implora
nem ri, patinando muros.

Já nem se escuta a poeira
que o gesto espalha no chão.
A vida conta-se, inteira,
em letras de conclusão.

Por que é que revoa à toa
o pensamento, na luz?
E por que nunca se escoa
o tempo, chaga sem pus?

O inseto petrificado
na concha ardente do dia
une o tédio do passado
a uma futura energia.

No solo vira semente?
Vai tudo recomeçar?
É a falta ou ele que sente
o sonho do verbo amar?

(Carlos Drummond de Andrade)

sábado, 13 de fevereiro de 2010

MUSICA CALADA



Dizias que nos sobram as palavras:
e era o lugar perfeito para as coisas
esse escuro vazio no teu olhar.


E demorava a dura paciência,
fruto do frio nas nossas mãos vazias
que mais coisas não tinham para dar.


Dizia então a dor o nosso gesto
e durava nas coisas mais antigas
a solidão sem rasto que há no mar.



Luís Filipe Castro Mendes
In: Poesia Reunida (1985-1999)

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Recolhimento

Sê sábia, minha dor, e mantém-te mais quieta!
Reclamavas a Noite, ei-la que vem descendo:
Ar de sombra por tudo a atmosfera projeta,
A uns trazendo a paz, a angústia a outros trazendo.

Enquanto dos mortais a multidão objeta,
Sob o flagelo do Prazer, este algoz sem virtude,
Na festa mais servil de remorso e repleta,
Minha Dor, dá-me a mão! Teu corpo em mim se escude!

Vê curvados além perdidos os Anos passados,
Nas sacadas dos céus de vestidos antiquados,
Surgir do fundo do mar a Saudade sorridente;

Dormir o Sol morrente sob arcada branda
E assim com um sudário arrastado no Oriente,
Ouve, minha cara, a doce noite que anda.

(Charles de Baudelaire)

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Renúncia

Renunciar. Todo o bem que a vida trouxe,
Toda a expressão do humano sofrimento
A gente esquece assim como se fosse
Um vôo de andorinha em céu nevoento.

Anoiteceu de súbito. Acabou-se
Tudo… A miragem do deslumbramento…
Se a vida que rolou no esquecimento
Era doce, a saudade inda é mais doce.

Sofre de ânimo forte, alma intranqüila!
Resume na lembrança de um momento
Teu amor. Olha a noite: ele cintila.

Que o grande amor, quando a renúncia o invade,
Fica mais puro porque é pensamento,
Fica muito maior porque é saudade.

(Carneiro da Cunha)

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

A VOZ DA SAUDADE



Se cai a noite plácida, serena,
Tão branca de luar — doce magia...
A carícia da brisa torna a cena,
Num requinte envolvente de poesia.

O azul do céu de uma beleza extrema
Povoado de estrelas irradia,
E qual o encantamento de um poema
Faz palpitar sutil melancolia.

No Coração da mata um mocho pia
Rompendo a solidão num tom dolente,
Como um canto de amarga soledade.

E o coração da gente silencia
Porque mais alto que sua voz ardente
Fala a voz merencória da saudade.

Bernardina Vilar

SAUDADE



É o longo espaço do momento
Em que murcharam nossas esperanças
É o sonho que restou no pensamento
Como uma apoteose de nuanças.

Saudade é conservar bem vivo, atento
O amor passado, cálida lembrança!
É contemplar sozinho ao desalento
A extrema solidão que em nós descansa.

Saudade é um coração pulsante forte,
Palpitante, ansioso, inconsolável
Por ver o aproximar de uma partida.

E ser logo atingido pela morte
De seu amor tão grande, inigualável,
Consumindo num adeus de despedida.

Bernardina Vilar

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Meus luares



Luas que se sucedem
nas sombras do tempo
acendem as noites
e as límpidas madrugadas

Caminhante das vias estrelares,
assisto ocasos nos vinhedos
misturados ao brilho
da rainha celeste,
eterna fonte de poesia

És meu descanso
nos caminhos turvos
das noites de azeviche,
como parte do mistério ceifado
brilhando muda na solidão


Conceição Bentes
Publicado no Recanto das Letras em 02/02/10
Código do Texto: T2064534

Nada Más

Aunque te vayas por otro camino,
aunque no sepas de mi soledad...
Te quiero, vida, corazón, destino,
quererte así es toda mi verdad.

Fuiste el ensueño, mi querer divino,
fuiste el lucero de mi obscuridad,
fuiste mis pasos, de andar peregrino...
Has sido tanto... Vuelo, libertad!

Pero te has ido y me quedé vacía,
sin rumbo o puerto, sea noche o día...
Días son noches, sin amanecer.

Quién soy? No sé... Pedazos en el viento...
Todo se fué, la fuerza, el sentimiento...
Y que te ofrezco, si quieres volver?

(Patrícia Neme)

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Últimos Versos

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Escrever, por exemplo: “A noite está estrelada,
e tiritam, azuis, os astros lá ao longe”.
O vento da noite gira no céu e canta.

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Eu amei-a e por vezes ela também me amou.
Em noites como esta tive-a em meus braços.
Beijei-a tantas vezes sob o céu infinito.

Ela amou-me, por vezes eu também a amava.
Como não ter amado os seus grandes olhos fixos.
Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Pensar que não a tenho. Sentir que já a perdi.

Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela.
E o verso cai na alma como no pasto o orvalho.
Importa lá que o meu amor não pudesse guardá-la.
A noite está estrelada e ela não está comigo.

Isso é tudo. Ao longe alguém canta. Ao longe.
A minha alma não se contenta com havê-la perdido.
Como para chegá-la a mim o meu olhar procura-a.
O meu coração procura-a, ela não está comigo.

A mesma noite que faz branquejar as mesmas árvores.
Nós dois, os de então, já não somos os mesmos.
Já não a amo, é verdade, mas tanto que a amei.
Esta voz buscava o vento para tocar-lhe o ouvido.

De outro. Será de outro. Como antes dos meus beijos.
A voz, o corpo claro. Os seus olhos infinitos.
Já não a amo, é verdade, mas talvez a ame ainda.
É tão curto o amor, tão longo o esquecimento.

Porque em noites como esta tive-a em meus braços,
a minha alma não se contenta por havê-la perdido.
Embora seja a última dor que ela me causa,
e estes sejam os últimos versos que lhe escrevo.

(Pablo Neruda)