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domingo, 7 de setembro de 2014

OS RETRATOS


Os antigos retratos de parede
não conseguem ficar longo tempo abstratos.

Às vezes os seus olhos te fixam, obstinados
porque eles nunca se desumanizam de todo.

Jamais te voltes para trás de repente.
Não, não olhes agora!

O remédio é cantares cantigas loucas e sem fim...
Sem fim e sem sentido...

Dessas que a gente inventava para enganar a solidão
dos caminhos sem lua.

Mário Quintana
In: Esconderijos do Tempo



[Formatação da amiga Amália Catarina Wichert Grande] 

domingo, 27 de janeiro de 2013

As Coisas Transitórias


Irmão,
nada é eterno, nada sobrevive.
Recorda isto, e alegra-te.

A nossa vida
não é só a carga dos anos.
A nossa vereda
não é só o caminho interminável.
Nenhum poeta tem o dever
de cantar a antiga canção.
A flor murcha e morre;
mas aquele que a leva
não deve chorá-la sempre...
Irmão, recorda isto, e alegra-te.

Chegará um silêncio absoluto,
e, então, a música será perfeita.
A vida inclinar-se-á ao poente
para afogar-se em sombras doiradas.
O amor há-de ser chamado do seu jogo
para beber o sofrimento
e subir ao céu das lágrimas ...
Irmão, recorda isto, e alegra-te.

Apanhemos, no ar, as nossas flores,
não no-las arrebate o vento que passa.
Arde-nos o sangue e brilham nossos olhos
roubando beijos que murchariam
se os esquecêssemos.

É ânsia a nossa vida
e força o nosso desejo,
porque o tempo toca a finados.
Irmão, recorda isto, e alegra-te.

Não podemos, num momento, abraçar as coisas,
parti-las e atirá-las ao chão.
Passam rápidas as horas,
com os sonhos debaixo do manto.
A vida, infindável para o trabalho
e para o fastio,
dá-nos apenas um dia para o amor.
Irmão, recorda isto, e alegra-te.

Sabe-nos bem a beleza
porque a sua dança volúvel
é o ritmo das nossas vidas.
Gostamos da sabedoria
porque não temos sempre de a acabar.
No eterno tudo está feito e concluído,
mas as flores da ilusão terrena
são eternamente frescas,
por causa da morte.
Irmão, recorda isto, e alegra-te.

Rabindranath Tagore,
 in "O Coração da Primavera"
Tradução de Manuel Simões

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

'AUTO-ANÁLISE'


Sob a intensa luz da cena
e na plateia em penumbra,
vivo e me observo a viver.

(De quem o amargo sorriso?
Quem sonha uma outra vivência?)

Helena Kolody
de Tempo

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

O Céu e o Ninho


És ao mesmo tempo o céu e o ninho.

Meu belo amigo, aqui no ninho,
o teu amor prende a alma
com mil cores,
cores e músicas.

Chega a manhã,
trazendo na mão a cesta de oiro,
com a grinalda da formosura,
para coroar a terra em silêncio!

Chega a noite pelas veredas não andadas
dos prados solitários,
já abandonados pelos rebanhos!
Traz, na sua bilha de oiro,
a fresca bebida da paz,
recolhida
no mar ocidental do descanso.

Mas onde o céu infinito se abre,
para que a alma possa voar,
reina a branca claridade imaculada.
Ali não há dia nem noite,
nem forma, nem cor,
nem sequer nunca, nunca,
uma palavra!


Rabindranath Tagore

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Poema do tempo


Tem o importante que sabe que é comum
Tem o comum que se acha importante
Tem o diamante que sabe que é pedra
Tem a pedra que se acha diamante
Enquanto isso, o tempo passa levando
Comuns, importantes, pedras e diamantes.

Ricardo Azevedo
In Ninguém sabe o que é um poema

segunda-feira, 11 de abril de 2011

ROSTO COM DOIS PERFIS


Renuncio às palavras
e às explicações.
Ando pelos contornos,
onde todos os significados
são sutis, são mortais.

Não quero perder o momento
belo. Quero vivê-lo mais,
com a intensidade que exige a vida:
desgarramento e fulguração.

Então me corto ao meio e me solto
de mim:
a que se prende e a que voa,
a que vive e a que se inventa.
Duplo coração:
a que se contempla e a que nunca
se entende,
a que viaja sem saber se chega
- mas não desiste jamais.

Lya Luft

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Melancolia

À volta todas as rosas eram vermelhas
A hera era preta.

Querida, assim com um só mover de cabeça teu,
Todos os meus velhos desesperos despertarão!

Demasiado azul, demasiado terno era o céu,
O ar demasiado suave, demasiado verde o mar.

Eu receio sempre, e eu não sei porquê,
Um lamentável afastamento de ti.
Eu estou cansado dos ramos de azevinho
E enfadado do alegre espinheiro

De todos os infindáveis caminhos do país;
De tudo, meu Deus! exceto de ti.


Ernest Dowson

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

DAS TARDES, SETEMBRO RENASCE

Trazidas das tardes, setembro renasce,
da fala da moça à janela sombria,
da torre tão pútrida voz da abiose ,
das águas do rio deste brilho do dia.

Eira sem beira das frontes das casas,
estio que tangido da terra postada,
dos cães deste abril sós urrando do prado,
dos ossos sem fôlego quase das asas.

Da moça franzina cá parva de olhar,
das aves sem branco do céu destas nuvens,
dos tons azuis mortos das frontes das pontes.

Passagem dos rios desta pedra do mito,
tinir quase breve das folhas das margens,
passadas dos passos dos mortos do séquito.

Eric Ponty

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Tempo

A mim que desde a infância venho vindo,
como se o meu destino,
fosse o exato destino de uma estrela,
apelam incríveis coisas:
pintar as unhas, descobrir a nuca,
piscar os olhos, beber.

Tomo o nome de Deus num vão.
Descobri que a seu tempo
vão me chorar e esquecer.

Vinte anos mais vinte é o que tenho,
mulher ocidental que se fosse homem,
amaria chamar-se Eliud Jonathan.

Neste exato momento do dia vinte de julho,
de mil novecentos e setenta e seis,
o céu é bruma, está frio, estou feia,
acabo de receber um beijo pelo correio.

Quarenta anos: não quero faca nem queijo.
Quero a fome.

(Adélia Prado)

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

'COMO OS PASSIVOS AFOGADOS'


esperando o tempo da areia
pelo mar de inúmeros lados
bóio tão venturosa e alheia
que,para mim, a noite e o dia
têm o mesmo sol sem ocaso,
e o que eu queria e não queria
aceitaram seu justo prazo

E nem me encontra quem me espera
nem o que esperei foi havido,
tanto me ausento desta esfera.

Ó liberdade sem tormento!
(Ó fitas soltas, ó cortinas
Levadas por um amplo vento
além de campos e colinas!...)
Vencendo sucessivos planos,
abrindo mundo encobertos
chegando ao reinos sobre-humanos
onde há jardim para os desertos!

A alma do sonho fez-se ouvido
tão vertiginoso e profundo
que capta o recado perdido
dos ocultos donos do mundo.

Cecília Meireles
In: Flor de poema – Canções. Coleção Poiesis. Ed. Nova Fronteira 6ª. ed. p.253

domingo, 24 de outubro de 2010

BASTA...


basta
nada quero mais da morte
nada quero mais da dor ou sombras basta
meu coração é esplêndido como uma palavra

meu coração se tornou belo como o sol
que sai voa canta meu coração
é desde cedo um passarinho
e depois é o teu nome

teu nome se eleva todas as manhãs
esquenta o mundo e declina
solitário em meu coração
sol em meu coração.

(Juan Gelman
Trad.:Antonio Miranda)

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Curiosidade


O que vais buscar,
barquinho, lento e sozinho
tão longe no mar ?

Delores Pires

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

"A Coruja Branca"


Em minha casa entre as árvores ouço o rumor da noite.
O vento escorraça os astros crepitantes
As montanhas descem em direcção ao mar como rebanhos
que não tivessem esperado a licença da aurora para
a migração necessária.
E a erva cresce. E a água corre. E o mundo recomeça
como uma palavra interrompida. E as nuvens caem do céu
e rastejam no caminho danificado pelas chuvas de janeiro.
Um pio atravessa a folhagem murmurante.
A coruja branca, minha irmã sedentária,
vigia na escuridão o mundo abandonado
por tantas pálpebras fechadas.

Lêdo Ivo

Como te Amo?


Como te amo?

Deixa-me contar de quantas maneiras.

Amo-te até ao mais fundo, ao mais amplo
e ao mais alto que a minha alma pode alcançar
buscando, para além do visível dos limites do

Ser e da Graça ideal.

Amo-te até às mais ínfimas necessidades de todos
os dias à luz do sol e à luz das velas.

Amo-te com liberdade, enquanto os homens lutam
pela Justiça;

Amo-te com pureza, enquanto se afastam da lisonja.

Amo-te com a paixão das minhas velhas mágoas
e com a fé da minha infância.

Amo-te com um amor que me parecia perdido quando
perdi os meus santos amo-te com o fôlego, os
sorrisos, as lágrimas de toda a minha vida!

E, se Deus quiser, amar-te-ei melhor depois da morte.

(Elizabeth Barrett Browning)

sábado, 14 de agosto de 2010

Serenata

Repara na canção tardia
que timidamente se eleva,
num arrulho de fonte fria.

O orvalho treme sobre a treva
e o sonho da noite procura
a voz que o vento abraça e leva.

Repara na canção tardia
que oferece a um mundo desfeito
sua flor de melancolia.

É tão triste, mas tão perfeito,
o movimento em que murmura,
como o do coração no peito.

Repara na canção tardia
que por sobre o teu nome, apenas,
desenha a sua melodia.

E nessas letras tão pequenas
o universo inteiro perdura.

E o tempo suspira na altura
por eternidades serenas.

(Cecília Meireles)

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

"Alegria"


Há alegria no sol que num triunfal rompante
como um broto de luz que rompesse as entranhas
da terra, - surge além pelas sombras, distante,
a incendiar como um louco a encosta das montanhas!

Há alegria no mar onde as conchas apanhas!
Na noite mansa e azul, silenciosa e brilhante,
e nas nuvens que no ar tomam formas estranhas,
nas mãos ágeis do vento irrequieto e inconstante!

Há alegria nas ruas, nas flores, - nas aves
que enchem ramos e céus de melodias suaves,
e em meus olhos tristonhos refletindo os teus...

Alegria não há, no entanto, mais completa
que essa que canta e ri no coração de um Poeta
quando ao findar de um poema se imagina Deus!


JG de Araujo Jorge
in "Amo!' (1938)

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

ANIVERSÁRIO

Para o teu aniversário
o céu se arrumou inteiro:
estrelas escreveram teu nome,
cometas construíram um caminho
com poeira de luz
para que o teu destino,
carruagem carregada de sonhos,
pudesse passar.

Para o teu nascimento
os anjos inventaram palavras
nunca antes pronunciadas,
e os jardins secretos
fabricaram flores desconhecidas.

Para o teu nascimento
o universo inteiro
desfraldou suas velas.


Roseana Murray
In 'Pêra, uva ou maçã'




quarta-feira, 4 de agosto de 2010

'Sinos que dobram'


Os sinos dobram
pela falta de um olhar,
ancorado nas incertezas
da efêmera existência

Tocam chamando à fé,
pela partida da missão cumprida,
na calmaria anunciada,
do tempo que solta suas ventanias

São sons que falam do vazio
presente em cada alma,
como o acordar da vida,
uma saudade incontida
em cada um de nós


Conceição Bentes
Publicado no Recanto das Letras em 03/08/10
Código do Texto: T2416248

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

'Passaggio segreto'


Parole d'amore e di preghiera,
come inutili monete fuori corso,
giacciono nel giardino sfiorito
dove le abbiamo abbandonate.

Ma quel luogo dimenticato, aperto
al vento; quel luogo inspiegato
e il momento che sussiste inalterato
al di là di macerie di memorie,
dischiusero per noi, smarriti eredi
del quotidiano, un passaggio segreto,
imprevedibile, insperato.


Bruna dell'Agnese
In’ Vuoto in Giardino’ -Spinea-Venezia, 1993 ed. del Leone

Passagem secreta

Palavras de amor e de prece
como inúteis moedas fora de circulação
jazem no jardim sem viço
onde as abandonamos

(Mas aquele lugar inexplicado
e o instante que permanece inalterado,
para além de memórias em ruínas,
descerraram para nós, desolados herdeiros
do cotidiano, uma passagem secreta
imprevisível, inesperada)

Bruna dell'Agnese

segunda-feira, 26 de julho de 2010

EM VIAGEM


Arde a montanha
- brasa de ametista –
atravessada de sol


O grande crepúsculo
é um calmo incêndio
que se espalma
na redoma da tarde


Os laranjais
- surdo perfume –
se preparam
para acolher a noite


Rio, 1º/7/80



Hélio Pellegrino
In: Minérios Domados

terça-feira, 13 de julho de 2010

***


O denso lago e a terra de ouro:
até hoje penso nessa luz vermelha
envolvendo a tarde de um lado e de outro.

E nas verdes ramas, com chuvas guardadas,
e em nuvens beijando os azuis e os roxos.

Até hoje penso nas rosas de areia,
nos ventos de vidro, nos ventos de prata,
cheios de um perfume quase doloroso.

Perguntava a sombra: " Que há pelo teu rosto?"
"que há pelos teus olhos?" - a água perguntava.

E eu pisando a estrada, e eu pisando a estrada,
vendo o lago denso, vendo a terra de ouro,
com pingos de chuva numa luz vermelha...

E eu não respondendo nada.
Sonho muito, falo pouco.

Tudo são risos de louco
e estrelas da madrugada...


Cecília Meireles
In "Vaga Música"

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Reflexões


Um barco passa ao longe
Na linha do horizonte.

Passa o tempo,
uma alegria, alguns sorrisos
Muitos sonhos, algumas dores
Muitos amores, poucas verdades

Um adeus,
algumas lagrimas, recordações
como no horizonte ao pôr-do-sol
Vão se esfumando as lembranças

Que importa se desce a sombra
Se tudo já é passado.
Navega comigo,
Até que a noite desapareça.

Anna Carlini
(Porto-PT-1949)

segunda-feira, 28 de junho de 2010

EU NÃO O TINHA OLHADO

Eu não o tinha olhado e nossos passos
soavam juntos.

Nunca escutei sua voz e minha voz ia
enchendo o mundo.

Houve um dia de sol e minha alegria
em mim não coube.

Senti a angústia de carregar a nova
solidão do crepúsculo.

Senti-o junto a mim, braços ardendo,
limpo, sangrante, puro.

Dentro da noite negra a minha dor
entrou no coração.

E vamos juntos.


Pablo Neruda
tradução: José Eduardo Degrazia

Na Ilha


Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites,
manhãs e madrugadas em que não precisamos de morrer.

Então sabemos tudo do que foi e será.

O mundo aparece explicado definitivamente e entra
em nós uma grande serenidade, e dizem-se as
palavras que a significam.

Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas mãos.
Com doçura.

Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a
vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o
sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do
mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos
ossos dela.

Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres
como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.

(José Saramago)

quinta-feira, 17 de junho de 2010

'SOBRE A AREIA'


Sonho – sonho de amor! Suprema graça,
Que, apenas se oferece, já se esquiva.
Mal daquele que estende as mãos e o abraça
Numa forma terrena e relativa!

O homem, que passa, como tudo passa,
Busca o ideal em que viva e sobreviva:
Tal o efêmero floco de fumaça
Desenha uma figura fugitiva ...

Mostras-me o céu; o céu, com que me acenas,
De tão longínquo, desespera e cansa,
De tão remoto, o coração dissuade.

Para minha alma és uma sombra, apenas ...
Menos dói que uma sombra: - uma lembrança ...
Mais do que uma lembrança: - uma saudade ...


Heitor Lima
in Primeiros Poemas

terça-feira, 15 de junho de 2010

VIVÊNCIA ROMÂNTICA

(Tela by Guillaume Seignac)

Cantareis quantos astros há no céu;
as plumas que, a correr, vibram no ar;
os passos que tem dado o verbo andar
e os furinhos minúsculos de um véu!


Cantareis quantos sons produz Orfeu
e as escamas dos peixes que há no mar,
porem não podereis jamais contar
as penas que a minha alma já sofreu!


São elas, e já foram, tantas, tantas
que nem todas as folhas que há nas plantas,
unidas às que Deus venha a compor,


as logram suplantar em quantidade!
E, se quereis saber se isto é verdade,
amai alguém que ofenda o vosso amor.



Octavio de Medeiros
In: Os Meus Brazões

domingo, 6 de junho de 2010

'DIA DE OUTONO'


Senhor, é tempo! O estio foi bem grande.
No relógio solar pousa tua sombra,
a pela pradaria o vento expande.


Amadurece a fruta derradeira:
dá-lhe dois dias mais meridionais
em que se aperfeiçoe, e exige o mais
doce sabor à pejada videira.


Quem não tem casa, agora, não a faça;
se há alguém sozinho, assim deve ficar
a ler ou longas cartas rascunhar,
nas alamedas onde inquietos passa
enquanto as folhas tremem soltas no ar.



Rainer Maria Rilke
In: Poemas e Cartas a um Jovem Poeta
Traduções: Geir Campos e Fernando Jorge

sábado, 5 de junho de 2010

O Sonho


Quantas vezes, em sonho, as asas da saudade
Solto para onde estás, e fico de ti perto!
Como, depois do sonho, é triste a realidade!
Como tudo, sem ti, fica depois deserto!

Sonho... Minha alma voa. O ar gorjeia e soluça.
Noite... A amplidão se estende, iluminada e calma:
De cada estrela de ouro um anjo se debruça,
E abre o olhar espantado, ao ver passar minha alma.

Há por tudo a alegria e o rumor de um noivado.
Em torno a cada ninho anda bailando uma asa.
E, como sobre um leito um alvo cortinado,
Alva, a luz do luar cai sobre a tua casa.

Porém, subitamente, um relâmpago corta
Todo o espaço... O rumor de um salmo se levanta
E, sorrindo, serena, apareces à porta,
Como numa moldura a imagem de uma Santa...

(Olavo Bilac)

terça-feira, 1 de junho de 2010

"Para esquecer"


Para esquecer as nuvens cor de fruto,
o acenar do crepúsculo absoluto
e este ficar-me em restos retardios,
a minha sombra escrevo entre dois rios.


Cada minuto é o último minuto,
e com meus olhos e meus dedos luto,
e de cegueira teço ávidos fios
sobre pêndulos, pedras, poços frios.


A vida cabe em minha boca ardente,
e eu a soletro, em fuga, no acidente
de disparadas linhas. E o que existe,


o que de meu mais fundo mim afogo
sob a ilusão de verbo, rosa e fogo
é engano, rastro e som de um homem triste.


Abgar Renault

Prece


dá-me a lucidez das
correntezas para que eu descubra
entre as tristezas que se
avolumam algum
sorriso mesmo
que não seja para mim

dá-me a serenidade de uma
estrela para que eu imagine
entre as lágrimas que não
me deixam qualquer
paz ainda
que breve

dá-me a claridade das
luas cheias para que eu invente
entre as angústias que se esparramam um
horizonte mesmo
que se transmude em ilusão

dá-me a esperança das
árvores para que eu teça
entre as ausências que se
imensificam uma sanidade ainda
que estofada de
delírios


Adair Carvalhais Júnior
(Minas Gerais)

Saudação da Saudade

Minha saudade
saúda tua ida
mesmo sabendo
que uma vinda
só é possível
noutra vida

Aqui, no reino
do escuro
e do silêncio
minha saudade
absurda e muda
procura às cegas
te trazer à luz

Ali, onde
nem mesmo você
sabe mais
talvez, enfim
nos espere
o esquecimento

Aí, ainda assim
minha saudade
te saúda
e se despede
de mim

(Alice Ruiz)

domingo, 23 de maio de 2010

Serenata do Adeus

Ai, a lua que no céu surgiu
Não é a mesma que te viu
Nascer dos braços meus...
cai a noite sobre o nosso amor
E agora só restou do amor
Uma palavra: Adeus...

Ai, vontade de ficar
Mas tendo de ir embora...
Ai, que amor é se ir morrendo
Pela vida afora
É refletir na lágrima
O momento breve
De uma estrela pura
cuja luz morreu...

Ò mulher, estrela a refulgir
Pane, mas antes de partir
Rasga o meu coração...
crava as garras no meu peito em dor
E esvai em sangue todo o amor
Toda a desilusão...

Ah, vontade de ficar
Mas tendo de ir embora...
Ai, que amar é se ir morrendo
Pela vida afora
É refletir na lágrima
O momento breve
De uma estrela pura
cuja luz morreu
Numa noite escura
Triste como eu...

(Vinícius de Moraes)

sexta-feira, 21 de maio de 2010

BALADA TRISTE


...e tu passaste, indiferente,
e foste embora sem saber
que em outro peito ,tristemente,
um coração estava doente,
um coração ia morrer.

Dona do olhar profundo e ardente,
Dona dos gestos sem prazer,
Dos olhos meus passaste rente,
como uma flor triste e dolente,
na sombra azul do entardecer.

E tu passaste indiferente,
E foste embora sem saber
Do coração que estava doente,
Dona do olhar profundo e ardente
Dona dos gestos sem prazer.

Como uma flor triste e dolente
Na sombra azul do entardecer,
Ele morria lentamente,
E tu passaste indiferente,
E foste embora sem saber...

Alceu Wamosy
De Antologia de Escritores Brasileiros
Alzira Freitas Taques, pág.2.804 1.958

sábado, 15 de maio de 2010

'EXTREMO-ORIENTE'

A vida é uma flor que eu mal aspiro,
pois todo o aroma é pérfido, no fundo.
Numa ilha ideal vivo em retiro,
longe dos homens vãos, fora do mundo.

São finas porcelanas delicadas
os meus prazeres, em que toco apenas.
E do meu chá nas espirais levadas,
em ondas aromais, vão se me as penas ...

Passo os dias a olhar, pela janela
do quiosque encantado onde me abrigo,
rios de ouro em paisagens de aquarela.

E, poeta real nas vestes e etiquetas,
faço, com o abano do meu leque antigo,
voarem meus sonhos – como borboletas ...

Onestaldo de Pennafort
in Poesia

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Solidão

Imensas noites de inverno,
com frias montanhas mudas,
é o mar negro, mais eterno,
mais terrível, mais profundo.

Este rugido das águas
é uma tristeza sem forma:
sobe rochas, desce fráguas,
vem para o mundo e retorna...

E a nevoa desmancha os astros,
e o vento gira as areias:
nem pelo chão ficam rastros
nem, pelo silencio, estrelas.

A noite fecha seus lábios
- terra e céu – guardado nome.
E os seus longos sonhos sábios
geram a vida dos homens.

Geram os olhos incertos,
por onde descem os rios
que andam nos campos abertos
da claridade do dia.

(Cecília Meireles)

sábado, 8 de maio de 2010

Poema à Mãe


No mais fundo de ti
Eu sei que te traí, mãe.

Tudo porque já não sou
O menino adormecido
No fundo dos teus olhos.

Tudo porque ignoras
Que há leitos onde o frio não se demora
E noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
São duras, mãe,
E o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
Que apertava junto ao coração
No retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
Talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
Esqueceste que as minhas pernas cresceram,
Que todo o meu corpo cresceu,
E até o meu coração
Ficou enorme, mãe!

Olha - queres ouvir-me? -
Às vezes ainda sou o menino
Que adormeceu nos teus olhos;

Ainda aperto contra o coração
Rosas tão brancas
Como as que tens na moldura;

Ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
No meio do laranjal...

Mas - tu sabes - a noite é enorme,
E todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
Dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.

(Eugénio de Andrade)

sexta-feira, 7 de maio de 2010

SONETO PARA VINÍCIUS, ANTÔNIO EM MEIO AOS ANJOS


Entre nuvens te vais, rumo ao país do frio.
Mas se a noite desfaz tuas claras pegadas,
luz o poema no tempo, e a flor das madrugadas
acende sobre a mesa o teu copo vazio.


Tua flauta de Orfeu teve a doçura e o brio
que a alma do povo entende; em teu canto às amadas
fez-se apelo e queixume o sonho fugidio:
consumiste em paixão as coisas desejadas.


Em teu samba chorava a sofrida ternura,
e ao ritmo do violão doce gemido era
a dor/chama do amor, eterna enquanto dura.


Agora, ergue o teu corpo e saúda o caminho:
entre os anjos te vais; e estão à tua espera
São Francisco de Assis e seu Jesuscristinho.



Waldemar Lopes
In: Cinza de Estrelas

sábado, 1 de maio de 2010

A CONCHA

Talvez te seja inútil minha vida,
Noite; fora do golfo universal,
Como concha sem peróla, perdida,
Me arremessaste no teu areal.

Moves as ondas, como indiferente,
E cantas sem cessar tua melodia.
Mas hás de amar um dia, finalmente,
A mentira da concha sem valia.

Jazer só a seu lado pela areia
E pouco faltar para que a escondas
Nessa casula onde ela se encandeia
à sonora campânula das ondas,

E as paredes da frágil concha, pouco
a pouco, se encherão do eco da espuma,
Tal como a casa de um coração oco,
Cheio de vento, de chuva e de bruma...

Ossip Mandelshtam
Poeta Russo, nascido em 15.01.1891
Terminou seus dias num campo de prisioneiros, em 27.12.1938, na Sibéria.
Estudou na Escola de Tenishevsky, Universidade de Heidelberg e Universidade de St. Petersburg.

Dá-me tua mão...


Dá-me tua mão
E eu te levarei aos campos musicados pela
canção das colheitas.
Cheguemos antes que os pássaros nos disputem
os frutos,
Antes que os insetos se alimentem das folhas
entreabertas.

Dá-me tua mão
E eu te levarei a gozar a alegria do solo
agradecido,
Te darei por leito a terra amiga
E repousarei tua cabeça envelhecida
Na relva silenciosa dos campos.

Nada te perguntarei,
Apenas ouvirás o cantar das águas adolescentes
E as palavras do meu olhar sobre tua face muito
amada.


Adalgisa Nery
in As Fronteiras da Quarta Dimensão (1951)

A Rua dos Cataventos – XVII


Da vez primeira em que me assassinaram,
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, a cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha.

Hoje, dos meu cadáveres eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada.
Arde um toco de Vela amarelada,
Como único bem que me ficou.

Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada!
Pois dessa mão avaramente adunca
Não haverão de arrancar a luz sagrada!

Aves da noite! Asas do horror! Voejai!
Que a luz trêmula e triste como um ai,
A luz de um morto não se apaga nunca!


Mário Quintana
in A rua dos Cataventos

Porto Parado


No movimento
lento
das barcaças
amarradas
o dia
sonolento
vai inventando as variações das nuvens...

Mario Quintana
In A cor do Invisível

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Agradecimento

Fazer Aniversário (Para Maria Madalena Schuck )

Fazer aniversário é ter a certeza de que ao menos uma vez ao ano a vida será vista de uma maneira diferente.
Fazer aniversário é brincar de crescer e quem sabe mais tarde virar "gente".
É sorrir sem ter motivo ou chorar pela mesma coisa.
É ter de novo a certeza de que os sonhos ainda poderão se realizar.
É reconhecer que amigos se importam com a sua importância.
É contar o tempo que se viveu e o que se deixou de viver.
É luz na escuridão.
É lembrar da vitória de um dia ter sido embrião.
É aprender a valorizar o tempo.
É contar com a presença dos ausentes.
É tornar novo o que se fez velho.
É fazer do novo o sempre.
Enfim, fazer aniversário é contar, os minutos, as horas os dias meses e anos, e muito mais que tudo isso...
Fazer aniversário é saber que só se nasce uma vez e que por isso a oportunidade de viver é única e isso torna o valor da vida sem valor, porque Fazer Aniversário é viver sem preço, mas viver feliz.

(Lyndcey Lee)

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Personagem

Teu nome é quase indiferente
e nem teu rosto mais me inquieta.
A arte de amar é exactamente
a de se ser poeta.

Para pensar em ti, me basta
o próprio amor que por ti sinto:
és a idéia, serena e casta,
nutrida do enigma do instinto.

O lugar da tua presença
é um deserto, entre variedades:
mas nesse deserto é que pensa
o olhar de todas as saudades.

Meus sonhos viajam rumos tristes
e, no seu profundo universo,
tu, sem forma e sem nome, existes,
silêncio, obscuro, disperso.

Teu corpo, e teu rosto, e teu nome,
teu coração, tua existência,
tudo - o espaço evita e consome:
e eu só conheço a tua ausência.

Eu só conheço o que não vejo.
E, nesse abismo do meu sonho,
alheia a todo outro desejo,
me decomponho e recomponho.

(Cecília Meireles)

terça-feira, 13 de abril de 2010

A lucidez perigosa

Estou sentindo uma clareza tão grande
que me anula como pessoa atual e comum:
é uma lucidez vazia, como explicar?
Assim como um cálculo matemático perfeito
do qual, no entanto, não se precise.
Estou por assim dizer
vendo claramente o vazio.
E nem entendo aquilo que entendo:
pois estou infinitamente maior que eu mesma,
e não me alcanço.
Além do que:
que faço dessa lucidez?
Sei também que esta minha lucidez
pode-se tornar o inferno humano
– já me aconteceu antes.
Pois sei que
– em termos de nossa diária
e permanente acomodação
resignada à irrealidade –
essa clareza de realidade
é um risco.
Apagai, pois, minha flama, Deus,
porque ela não me serve para viver os dias.
Ajudai-me a de novo consistir
dos modos possíveis.
Eu consisto,
eu consisto,
amém.

(Clarice Lispector)

terça-feira, 6 de abril de 2010

HÁ SOL NA RUA

(Paint by Roman Zaslonov)



Há sol na rua
Gosto do sol mas não da rua
Portanto fico em casa
Esperando que o mundo venha
Com suas torres douradas
E suas cascatas brancas
Com suas vozes de lágrimas
E as canções das pessoas alegres
Ou pagas para cantar
E à noitinha chega um momento
Em que a rua se torna
outra coisa
E desaparece sob a plumagem
De noite repleta de talvez
E dos sonhos dos que estão mortos
Então desço à rua
Que se estende até a aurora
Bem perto, uma fumaça se espreguiça
E caminho em meio à água seca
Água áspera da noite fresca
O sol não demora a voltar.



Boris Vian
(tradução de Ruy Proença)

DIAS DO DESTINO

(Photo by Fernando Campanella)

Quando são de espantar os dias turvos
e o mundo hostil e frio se apresenta,
amedronta-se a confiança tua
a depender de ti completamente.

Mas fechado em ti mesmo, desterrado
do país da relembrada alegria,
vais entrevendo paraísos novos
em que a crença tua se repatria.

Já reconheces como afim de ti
o que antes parecia adverso e estranho,
e passas a chamar com novo nome
o destino que tu vais aceitando.

O que fora ameaça de esmagar-te,
mostra-se afável, a respirar luz:
é qual um mensageiro, qual um guia
que bem alto e mais alto te conduz.

Hermann Hesse

6



Te recuerdo como eras en el último otoño.
Eras la boina gris y el corazón en calma.
En tus ojos peleaban las llamas del crepúsculo.
Y las hojas caían en el agua de tu alma.

Apegada a mis brazos como una enredadera,
las hojas recogían tu voz lenta y en calma.
Hoguera de estupor en que mi sed ardía.
Dulce jacinto azul torcido sobre mi alma.

Siento viajar tus ojos y es distante el otoño:
boina gris, voz de pájaro y corazón de casa
hacia donde emigraban mis profundos anhelos
y caían mis besos alegres como brasas.

Cielo desde un navío. Campo desde los cerros.
Tu recuerdo es de luz, de humo, de estanque en calma!
Más allá de tus ojos ardían los crepúsculos.
Hojas secas de otoño giraban en tu alma.


Pablo Neruda
In Veinte poemas de amor y una canción desesperada (1924)

segunda-feira, 5 de abril de 2010

O vento na Ilha

O vento é um cavalo
Ouça como ele corre
Pelo mar, pelo céu.
Quer me levar: escuta
como recorre ao mundo
para me levar para longe.

Me esconde em teus braços
por somente esta noite,
enquanto a chuva rompe
contra o mar e a terra
sua boca inumerável.

Escuta como o vento
me chama calopando
para me levar para longe.

Com tua frente a minha frente,
com tua boca em minha boca,
atados nossos corpos
ao amor que nos queima,
deixa que o vento passe
sem que possa me levar.

Deixa que o vento corra
coroado de espuma,
que me chame e me busque
galopandanto eu, emergido
debaixo teus grandes olhos,
por somente esta noite

descansarei, amor meu.

(Pablo Neruda)

sexta-feira, 2 de abril de 2010

O Sonho


Quantas vezes, em sonho, as asas da saudade
Solto para onde estás, e fico de ti perto!
Como, depois do sonho, é triste a realidade!
Como tudo, sem ti, fica depois deserto!


Sonho... Minha alma voa. O ar gorjeia e soluça.
Noite... A amplidão se estende, iluminada e calma:
De cada estrela de ouro um anjo se debruça,
E abre o olhar espantado, ao ver passar minha alma.


Há por tudo a alegria e o rumor de um noivado.
Em torno a cada ninho anda bailando uma asa.
E, como sobre um leito um alvo cortinado,
Alva, a luz do luar cai sobre a tua casa.


Porém, subitamente, um relâmpago corta
Todo o espaço... O rumor de um salmo se levanta
E, sorrindo, serena, apareces à porta,
Como numa moldura a imagem de uma Santa...

(Olavo Bilac)