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segunda-feira, 28 de junho de 2010

EU NÃO O TINHA OLHADO

Eu não o tinha olhado e nossos passos
soavam juntos.

Nunca escutei sua voz e minha voz ia
enchendo o mundo.

Houve um dia de sol e minha alegria
em mim não coube.

Senti a angústia de carregar a nova
solidão do crepúsculo.

Senti-o junto a mim, braços ardendo,
limpo, sangrante, puro.

Dentro da noite negra a minha dor
entrou no coração.

E vamos juntos.


Pablo Neruda
tradução: José Eduardo Degrazia

Na Ilha


Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites,
manhãs e madrugadas em que não precisamos de morrer.

Então sabemos tudo do que foi e será.

O mundo aparece explicado definitivamente e entra
em nós uma grande serenidade, e dizem-se as
palavras que a significam.

Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas mãos.
Com doçura.

Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a
vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o
sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do
mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos
ossos dela.

Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres
como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.

(José Saramago)

quinta-feira, 17 de junho de 2010

'SOBRE A AREIA'


Sonho – sonho de amor! Suprema graça,
Que, apenas se oferece, já se esquiva.
Mal daquele que estende as mãos e o abraça
Numa forma terrena e relativa!

O homem, que passa, como tudo passa,
Busca o ideal em que viva e sobreviva:
Tal o efêmero floco de fumaça
Desenha uma figura fugitiva ...

Mostras-me o céu; o céu, com que me acenas,
De tão longínquo, desespera e cansa,
De tão remoto, o coração dissuade.

Para minha alma és uma sombra, apenas ...
Menos dói que uma sombra: - uma lembrança ...
Mais do que uma lembrança: - uma saudade ...


Heitor Lima
in Primeiros Poemas

terça-feira, 15 de junho de 2010

VIVÊNCIA ROMÂNTICA

(Tela by Guillaume Seignac)

Cantareis quantos astros há no céu;
as plumas que, a correr, vibram no ar;
os passos que tem dado o verbo andar
e os furinhos minúsculos de um véu!


Cantareis quantos sons produz Orfeu
e as escamas dos peixes que há no mar,
porem não podereis jamais contar
as penas que a minha alma já sofreu!


São elas, e já foram, tantas, tantas
que nem todas as folhas que há nas plantas,
unidas às que Deus venha a compor,


as logram suplantar em quantidade!
E, se quereis saber se isto é verdade,
amai alguém que ofenda o vosso amor.



Octavio de Medeiros
In: Os Meus Brazões

domingo, 6 de junho de 2010

'DIA DE OUTONO'


Senhor, é tempo! O estio foi bem grande.
No relógio solar pousa tua sombra,
a pela pradaria o vento expande.


Amadurece a fruta derradeira:
dá-lhe dois dias mais meridionais
em que se aperfeiçoe, e exige o mais
doce sabor à pejada videira.


Quem não tem casa, agora, não a faça;
se há alguém sozinho, assim deve ficar
a ler ou longas cartas rascunhar,
nas alamedas onde inquietos passa
enquanto as folhas tremem soltas no ar.



Rainer Maria Rilke
In: Poemas e Cartas a um Jovem Poeta
Traduções: Geir Campos e Fernando Jorge

sábado, 5 de junho de 2010

O Sonho


Quantas vezes, em sonho, as asas da saudade
Solto para onde estás, e fico de ti perto!
Como, depois do sonho, é triste a realidade!
Como tudo, sem ti, fica depois deserto!

Sonho... Minha alma voa. O ar gorjeia e soluça.
Noite... A amplidão se estende, iluminada e calma:
De cada estrela de ouro um anjo se debruça,
E abre o olhar espantado, ao ver passar minha alma.

Há por tudo a alegria e o rumor de um noivado.
Em torno a cada ninho anda bailando uma asa.
E, como sobre um leito um alvo cortinado,
Alva, a luz do luar cai sobre a tua casa.

Porém, subitamente, um relâmpago corta
Todo o espaço... O rumor de um salmo se levanta
E, sorrindo, serena, apareces à porta,
Como numa moldura a imagem de uma Santa...

(Olavo Bilac)

terça-feira, 1 de junho de 2010

"Para esquecer"


Para esquecer as nuvens cor de fruto,
o acenar do crepúsculo absoluto
e este ficar-me em restos retardios,
a minha sombra escrevo entre dois rios.


Cada minuto é o último minuto,
e com meus olhos e meus dedos luto,
e de cegueira teço ávidos fios
sobre pêndulos, pedras, poços frios.


A vida cabe em minha boca ardente,
e eu a soletro, em fuga, no acidente
de disparadas linhas. E o que existe,


o que de meu mais fundo mim afogo
sob a ilusão de verbo, rosa e fogo
é engano, rastro e som de um homem triste.


Abgar Renault

Prece


dá-me a lucidez das
correntezas para que eu descubra
entre as tristezas que se
avolumam algum
sorriso mesmo
que não seja para mim

dá-me a serenidade de uma
estrela para que eu imagine
entre as lágrimas que não
me deixam qualquer
paz ainda
que breve

dá-me a claridade das
luas cheias para que eu invente
entre as angústias que se esparramam um
horizonte mesmo
que se transmude em ilusão

dá-me a esperança das
árvores para que eu teça
entre as ausências que se
imensificam uma sanidade ainda
que estofada de
delírios


Adair Carvalhais Júnior
(Minas Gerais)

Saudação da Saudade

Minha saudade
saúda tua ida
mesmo sabendo
que uma vinda
só é possível
noutra vida

Aqui, no reino
do escuro
e do silêncio
minha saudade
absurda e muda
procura às cegas
te trazer à luz

Ali, onde
nem mesmo você
sabe mais
talvez, enfim
nos espere
o esquecimento

Aí, ainda assim
minha saudade
te saúda
e se despede
de mim

(Alice Ruiz)